quarta-feira, 30 de julho de 2014

Silêncio

O silêncio, tantas vezes meu irmão nas trevas, faz-se agora sentir como uma espada em chamas cravada no meu interior..
Eterno companheiro que busco sempre antes de fechar os olhos ao dia, dilacera-me do interior, num castigo perpétuo que pareço não saber quebrar. talvez nem o queira..ele recorda-me do que é sentir, mesmo de armadura vestida, recorda-me que fui eu quem baixou a guarda.. Fui eu quem estendeu a mão ao ser que controla a espada.
Agora sangro, bem lá no interior, onde não chego.
Nestas manhãs parece um contra senso vestir a armadura para enfrentar o dia, já que a ameaça vem do meu interior.. está em mim a fonte da minha dor e por pior que me sinta, sou incapaz de culpar a mão que desferiu o golpe ou de me separar dela, o tempo e as circunstâncias fazem-no por mim.
As palavras vou abandonando-as na gaveta, vão-se acumulando as folhas cheias de pensamentos, dores e tormentos. Deponho-as como a um defunto num cemitério, onde estas vão para morrer.
De tempos a tempos, revisito as suas lajes, dedico-lhes a minha atenção e choro a saudade, apenas para depois as voltar a condenar à escuridão, à solidão.. nunca serão proferidas, serão silêncio em mim, este que agora sinto em dor.


Rejeito o dia, não sou capaz de enfrentar este calor quase enlouquecedor.. viajo-me durante a noite, só aí sou, na escuridão, onde vagueio pelas cidades sem ser visto, ou notado..sento-me num qualquer passeio e convido o silêncio a acompanhar-me.. olho o dia nascer, a vida a voltar às ruas, rogo-lhe pragas e procuro fugir da luz do sol que me queima olhos e pele.. Fica a memória, fica o arrependimento de tudo o que ficou por dizer.. meu irmão, o silêncio.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Foi grande o meu erro

Foi um erro!Sei-o agora tal como no primeiro momento, em que tal pensamento, cruzou a minha mente.Custará, talvez, a crer que seja possível ter o ser de tal forma subjugado que o próprio corpo deseja morrer.Queria paz! E só paz! Se houve dias em que a ousadia tomou forma e ocupou lugar neste meu gasto coração...Em que tentei estender a mão a um pouco de felicidade achando não ser suficiente a paz conquistada,foram breves os momentos em que acreditei ser digno de tal bênção.Sei-me na condição de um que fechou os olhos à luz e que agora morre nas trevas, lentamente, sem que lhe seja permitido o mínimo ruído, a mínima expressão de dor.Não rogo aos deuses porque não os acredito.Mesmo quando estou certo que não serei capaz de desembainhar a espada para infligir o derradeiro golpe que tantas vezes sonhei.Mas não será esta espada! Estas mãos... nuas, despidas de armadura, arma ou intenção, a desferi-lo.Foi grande o meu erro!Quando naquela manhã abandonei o mar decidido, abandonei também a armadura, na areia ainda húmida ficou, tombada. Ela era como uma crosta, uma segunda pele que usava, dura, feita de naufrágios, sangue e ossos. Levei minuciosos séculos na sua concepção. Era impenetrável. Era perfeição!Mas o meu ser, no seu interior, estava longe disso. Quis ser de novo homem!Quis voltar a cheirar a terra em terra, o mar da terra. Quis o mundo dos homens, quis ser vulgar ou ter algo com que me preocupar. Como estava enganado na acepção do homem... acabei invulgar na minha vulgaridade e para não variar nunca descobri o sentido das coisas que me eram dadas a experimentar. Quis voltar a sentir o calor de um abraço, esquecida estava a vulnerabilidade de tal movimento, de braços estendidos e peito aberto, expus-me!Aaaaah! Maldito serei. No mar, os bravos ensinaram-me a não ouvir os cantos das mais belas e misteriosas criaturas...Mas, de novo, quis ser homem!O homem não se sabe surdo a não ser quando privado da audição, não se sabe cego a não ser quando privado da visão, não se quer morto a não ser quando privado da emoção.Queria a força que temo já não existir. A força para me entregar ao mar para este me extinguir.No entanto, estou hoje certo – o mar não irá atender este meu recuo perante a minha própria decisão.Amotinado o meu corpo e mente quebraram o selo e este deixou de ser meu e eu seu.No mar, era o maior marinheiro, o melhor Capitão.. sabia-o de cor, reconhecia qualquer horizonte e não precisava de astros ou estrelas para me guiar... mas era também um seu prisioneiro! O meu mundo, embora vasto, tinha linhas que eu não era suposto cruzar. Isso fez crescer em mim o desejo.O desejo em breve deu lugar à vontade e a vontade por sua vez à crença. Acreditei haver mais...Foi grande o meu erro!Caminho hoje e não flutuo. Sou livre numa breve extensão do meu ser. Respiro, penso, vivo, sinto, amo, sangro...Aqui, eu sou! Sou e continuo só...


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O Monstro

O monstro dormirá hoje todo o dia.
Hoje não será dia de excessos, não será dia de pânico
ontem incendiámos o cubículo e sentá-mo-nos enquanto as chamas consumiam cimento, tintas e carne.
De sorrisos largos fizemos elaborados poemas de dor e desespero com silvos e sangue
no fim, quando apenas dor e negro se podiam distinguir, enterrá-mo-nos e dormimos ali.
Hoje, só eu voltei... não encontro senão o sossego.
Cruzo a perna, acendo o cigarro e absorvo todo o cinza das nuvens como conforto da alma seca que agora respira.
Cuspo terra e fumo no vento forte, aguardo, sem grande força, o regresso do Tirano.
Retirado sob os escombros, sonha novas revoluções de braços erguidos e asas negras reflectindo a noite escura em que nasceu.
A sua sombra cobrirá a cidade.
Eu serei o seu capitão, a fúria enraizada no solo, que comanda forças e demónios depravados que compelidos no ódio, penetrarão a pureza destilada que os outros usam como máscara,
lançando no caos esta realidade onde apenas por infortúnio surgiu, do ventre de uma mente perversa,o monstro.
E assim passarão os meus dias, sem culpa ou remorso, desprovidos de qualquer emoção...


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A árvore

O tempo passa suave na melodia da natureza circundante, há poucas nuvens no céu e o vento ajuda a manter-me sob o sol.
Perto da árvore, que outrora me atirava vezes sem conta ao solo, sou visitado por um sonho inebriante de contornos voluptuosos.
Nele, sou liberdade e pureza. Amor e ódio. Sou o tudo e não sou nada.
Nem sempre habito este cárcere corpóreo, nem sempre sou hábil na sua deposição, mas viajo-me muitas vezes, quase sempre de olhos cerrados, quase sempre ignorando o facto.
Um lobo negro de olhos verdejantes, correndo intrepidamente por paisagens que nunca vi. Sou eu a sua alma, o seu incansável coração, o ar que penetra os seus pulmões, sou as ervas que pisa e a árvore que escolhe para se deitar debaixo de quando o calor aperta. Sou a água que mata a sua sede, as garras, unhas e dentes com que desfaz os seus inimigos... sou eu quem seduz as suas fêmeas e sou eu quem lhes morde forte o pescoço na penetração. O meu espírito prospera e o seu.. uno com o meu, dá asas à sua dinastia.
Sou tudo isto e sem esforço. Sou tudo isto, por não TER de o ser.

Afastado da árvore, onde cedo respirei o ar velho do campo, lanço-me na selva de betão, vagueio embrenhado fundo nas suas artérias.
Prendo-me repetidamente a fugazes sorrisos perdidos na noite, abraço-os próximo nas trevas, para de manhã, bem cedo, beijar o adeus e partir nas ruas ainda húmidas pela chuva límpida que se tem feito sentir.. Gosto da chuva, do cheiro que a sua passagem aqui deixou.
Agarro o hoje sem perspectivas ou desejo no amanhã, mas estes pensamentos não ecoam em mim, vi-os pendurados na parede de um tribunal.

A maior parte dos cães, senhores, nas casas que passo, não se mostram incomodados pela minha presença na sua rua... no seu reino até perder de vista. Sabem-me superior, suponho.
Por vezes antagonizo os que se manifestam desfavoravelmente, mas não sem desconforto. Nunca perco tempo a perceber porque o faço, eles não representam qualquer ameaça.

Quando volto a casa tudo me parece estranho, revolvido... como se outro tivesse vivido ali no curto espaço de tempo em que estive ausente. Ou talvez tenha estado ausente durante mais tempo do que pensava.
Longas horas, ou até mesmo dias, passam até conseguir reconciliar-me, de novo, com os meus objectos...
No centro do meu mundo, majestosa, a minha árvore ergue-se larga, rugosa de braços para os céus. Apenas ela não muda aos meus olhos. A seus pés deito o meu corpo enegrecido, trato das feridas e durmo os meus dias.



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O deserto

Tenho as mãos secas e sós como um tronco morto no deserto.
Tacteando por entre folhas de papel e os lápis das mais diversas cores, procuro a Inspiração...
há semanas senti-a sumir-se na noite e questiono-me se voltará, se quererá voltar a ver-me, se me voltará a fazer sentir.
O meu olhar sobre a folha branca esconde a vontade de a dilacerar, mas jamais o meu ser, apaziguado pela terna melancolia, será capaz de realmente o fazer.
Tenho a sua imagem retida na memória, de costas voltadas, ainda se detém um momento e resiste à tentação de se voltar, parte! Desaparece no infinito da escuridão circundante... Fica uma suave brisa que me embala os cabelos enquanto planto os pés na areia em brasa - temo não a voltar a ver.
Não consigo trazer-me de volta deste maldito deserto para onde me lancei.
Sei que pode não ter sido a melhor ideia encerrar a minha alma na armadura, de que estava certo, me iria assegurar a sua protecção, no entanto, eu é que pareço ter perdido a chave...o acesso ao meu interior...Não sinto sequer a vontade, que imaginei inerente, de me evadir.

Fogem-me as palavras e abandonam-me as ideias. mas não largarei a caneta, secarei até ao pó, neste sol ensanguentado, antes de o fazer.
Reconheço que não levará muito tempo e desanima-me, a cada noite, ouvir o meu buraco abrir-se no solo mesmo a meu lado, onde planeei...
As horas sucedem-se, tudo se vai mutando em redor. E eu... continuo aqui, plantado, aguardo, subsisto.